Exigir uso do acessório e estabelecer sanções são atos legítimos do síndico
Tão logo organizações e profissionais da saúde convencionaram a adoção do uso de máscara como medida sanitária de prevenção de contágio pelo novo coronavírus, autoridades políticas e administrativas prontamente se ocuparam de estabelecer, cada qual em seu âmbito de competência, normas que positivassem a recomendação. Nesse sentido, a lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, foi pioneira em estabelecer, em seu art. 3°, que:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; Art. 3º -A. É obrigatório manter boca e nariz cobertos por máscara de proteção individual, conforme a legislação sanitária e na forma de regulamentação estabelecida pelo Poder Executivo federal, para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, em vias públicas e em transportes públicos coletivos....
Por sua vez, a regulamentação acerca da punição a ser aplicada em caso de inobservância das medidas ficou a cargo dos entes federados (Estados e Municípios):
§ 1º O descumprimento da obrigação prevista no caput deste artigo acarretará a imposição de multa definida e regulamentada pelo ente federado competente...
Forte em referidas disposições, os entes federados, por meio de decretos expedidos pelo Poder Executivo, passaram a exigir em seus respectivos territórios o uso de máscara em vias públicas e espaços privados de acesso ao público. A maior parte dessas normas, no entanto, restou silente quanto aos condomínios, dando margem para divergentes interpretações acerca do assunto.
Posto o problema, surge a seguinte indagação: é possível que a administração do condomínio exija o uso de máscara nas áreas comuns do condomínio e imponha sanções em caso de descumprimento sem que referidas regras tenham sido deliberadas em assembleia? Entendemos que sim.
Devemos recordar que as regras a serem aplicadas nos condomínios têm como fonte a Constituição Federal, leis, decretos, instruções normativas, portarias e demais comandos emitidos pelas autoridades políticas e administrativos, sejam elas de âmbito federal, estadual e municipal. Internamente, a convenção, o regimento interno, as decisões tomadas em assembleia, os usos e costumes e, ainda, os atos administrativos do síndico.
Quanto aos atos do síndico, cabe esclarecer que sua natureza é residual, isto é, destinam-se a suprir eventuais lacunas normativas diante do caso concreto e têm sua legitimidade condicionada ao atendimento de dois requisitos: impositividade e transitoriedade.
Impositividade diz respeito à necessidade de se estabelecer um comando de fazer ou não fazer fundamentado em fatos relevantes, que prescindem do contraditório.
Já a transitoriedade se refere à temporariedade do comando, que deve visar atender a uma necessidade imediata e circunstancial. Um bom exemplo de ato administrativo do síndico legítimo seria a proibição de uso de determinados espaços comuns quando em reforma ou das garagens quando em lavação. Com efeito, trata-se de atos em que em se verifica a necessidade de uma ordem temporária para se atender ao bem comum visando cumprir as determinações postas no art. 1348, I do Código Civil.
Especificamente acerca do uso de máscaras, a dinâmica dos eventos reclama a tomada de decisões imediatas, que possam ser flexibilizadas ou endurecidas de acordo com as circunstâncias, devendo revestir-se de força obrigacional sob pena de se confundirem com os conselhos e os pedidos a que alude Norberto Bobbio.
Se existe por parte das autoridades sanitárias, de forma quase que unânime, a recomendação do uso de máscara como forma de combate ao contágio do novo coronavírus, sendo estas recomendações acolhidas pelas autoridades competentes e transformadas em normas de cumprimento obrigatório em todo o território federal, não seria sensato submeter ao crivo da assembleia a decisão de optar ou não por tal medida, como se o condomínio existisse em um mundo paralelo a qual estamos vivendo.
Devemos salientar que a todos os condôminos é dado o direito de “usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores” (art. 1335, II do CC/2002). Podemos então dizer que existe um direito de usar e um dever de não obstaculizar o uso pelos demais, como duas faces da mesma moeda. Em complemento, o art. 1.336, IV do CC, estabelece que são deveres do condômino:
(...) IV – Dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.
Existe um direito por parte dos condôminos de usar, gozar e frequentar as áreas comuns, e isso, em tempos de pandemia, exige a tomada de providências por parte da administração para garantir um mínimo de segurança possível, em observação às orientações de autoridades sanitárias. Em contrapartida, existe um dever imposto aos demais condôminos de viabilizar essa garantia de ambiente salubre, aderindo aos mecanismos que se fizerem necessários. O direito e o dever são indiscutíveis. No dizer de BOBBIO1:
Basta observar que a atribuição de um direito (subjetivo) e a imposição de um dever são momentos correlatos do mesmo processo: uma norma que impõe um dever a uma pessoa atribui ao mesmo tempo a outra pessoa o direito de exigir o seu cumprimento, assim como uma norma que atribui um direito impõe ao mesmo tempo a outros o dever de respeitar o seu livre exercício ou de permitir a sua execução. Em outras palavras, direito e dever são as duas faces da relação jurídica, sendo que uma não pode existir sem a outra. Dizer que o direito permite e não comanda significa [...] não se dar conta de que o direito só permite, uma vez que, ao mesmo tempo, também comanda. (BOBBIO, 2010, p. 117/118)
Temos observado que, nos planos estadual e municipal, as regras impositivas do uso de máscara têm ocorrido por ato do poder executivo, por meio de Decretos e não por deliberação das respectivas assembleias e câmaras legislativas, de forma a possibilitar uma decisão rápida e imediata.
Neste sentido, por simetria das formas, por encontrarem-se presentes tanto a impositividade quanto a transitoriedade das medidas, bem como pela dinâmica dos fatos que acaba por esvaziar de sentido submeter à assembleia dos condôminos qualquer deliberação a este respeito, entendemos cabível a determinação de uso de máscara nas áreas comuns do condomínio por simples ato administrativo do síndico.
Uma vez vencido o primeiro ponto da celeuma, é preciso avançar para analisar a possibilidade de se impor penalidades pelo não cumprimento do ato administrativo com conteúdo normativo.
Segundo Hans Kelsen, toda norma jurídica seja ela de qualquer natureza, contém não apenas a imposição da conduta em si (ordem jurídica positiva), mas igualmente uma sanção para a hipótese de descumprimento (ordem moral positiva) e também pelo seu cumprimento. Essas duas dimensões da norma compõem uma unidade coesa, interdependente e complementar.
Certo é que a inexistência de uma sanção que acompanhe a norma não tem implicações em sua validade. Uma norma sem previsão de sanção é plenamente válida. Restará provavelmente prejudicada, por outro lado, no plano da eficácia, podendo-se dizer que uma ordem desacompanhada de mecanismos que desestimulem seu descumprimento tende a parecer um conselho ou sugestão, que pode ser acatado ou ignorado sem maiores consequências.
Por essa razão, é fácil compreender a razão pela qual a obrigatoriedade do uso de máscara nas áreas comuns condominiais está usualmente acompanhada da previsão de uma sanção para o caso de não uso. Há base legal para essa sanção?
Grande parte das convenções de condomínio e regimentos internos trazem disposições com conceitos abertos que acompanham os arts. 1335, II e 1336, IV do CC, que podem ser utilizados como fundamento jurídico das penas pelo não uso da máscara.
Essas disposições, que costumam coibir, sem especificar exaustivamente, condutas que ponham em perigo a saúde, salubridade ou segurança dos demais condôminos, estabelecendo punição em caso de infração, podem servir de fundamento para aplicação de penas pelo descumprimento das medidas sanitárias de prevenção ao COVID-19.
Com efeito, nas normas condominiais não se aplica o princípio da tipicidade característico do direito penal, em que se exige uma perfeita adequação do fato considerado infracional à norma que o sanciona, sendo bastante, no campo ora analisado, uma norma geral que proteja a saúde, salubridade e segurança dos demais condôminos.
Por todo o exposto, podemos concluir pela legalidade da imposição de obrigação de utilização de máscara nas áreas comuns do condomínio por ato administrativo do síndico, bem como da imposição de penalidades em caso de descumprimento.
Fonte: Sindiconet
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